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Foto do escritorTelas por Elas

Sutiã: uma peça (nem um pouco) íntima

Por Beatriz Cardoso e Luísa Silveira de Araújo


Quem nunca sentiu aquele alívio em tirar o sutiã após um dia de trabalho ou estudos? Depois de dois meses de quarentena, é certo que algumas mulheres simplesmente pararam de usar o sutiã. Estamos trancadas em casa, com contato mínimo com o mundo externo, então por que vestir tal peça de roupa desagradável? Há quem se sinta confortável de sutiã, e isso não é um problema, já que mulheres têm liberdade de pensar de forma diferente.


Este próprio Taburóloga é escrito por duas pessoas com opiniões contrárias: eu, Beatriz que vos fala, gosto de usar sutiã, mas esse não é o caso de Luísa. Por isso, o assunto central do nosso texto é por que usar sutiã? Por que não usar sutiã? Antes de abolir de vez o sutiã ou aceitar seu uso diário, é importante abordarmos algumas questões… Como uma peça íntima pode ser tão pública, apesar do que insinua o seu nome?


Isso parece confortável para você? Foto: Reprodução

Sutiã: origem e supostos benefícios


Não é possível atribuir a alguém a invenção do sutiã em si. A peça mudou de forma, proposta e nome em diferentes momentos da História, até chegar ao conceito atual. O sutiã se transformou de acordo com as demandas do tempo, sempre escondendo ou ressaltando os seios.


Algumas estudos apontam para o Império Romano como o berço da versão mais embrionária da roupa. Há registros de mulheres daquele tempo que usavam faixas para esconder sua silhueta desde jovens, já que seios maiores eram considerados “engraçados”. A peça tinha como objetivo impedir que os seios caíssem e ficassem flácidos — algo bem contemporâneo, não acha?


Segundo entrevista da Elle com o osteopata e porta-voz do Instituto de Osteopatia do Reino Unido Robin Lansman, a principal função do sutiã é dar suporte ao peso e estrutura peitoral. O especialista então explica que as possíveis dores nas costelas, pescoço e costas provocadas pela roupa são consequência de vestir um sutiã com alças desreguladas, ou de tamanho errado. Não sei de vocês, mas eu questiono literalmente tudo dito nessa frase — e olha que eu, Beatriz, gosto de usar sutiã —, a começar pelo fato que Robin Lansman é um homem.


Relação de ódio com sutiã: "Acho que devemos terminar. Não posso continuar te machucando assim". Foto: Reprodução

Claro, é possível sentir dor por usar o sutiã errado. Pesquisas mostram que mais de 80% das mulheres vestem o tamanho incorreto, sendo que 70% usam números menores, enquanto 10% vestem tamanhos maiores que o adequado. Falar que o sutiã “dá suporte” é uma forma bonita de dizer que seu propósito é prevenir seios caídos — quem nunca ouviu algo como “use sutiã, senão vai se arrepender quando ficar mais velha”?


Mas o sutiã de fato ajuda a evitar a tão temida gravidade? Não há muitos estudos que comprovem a eficácia da roupa, já que testes como esse são difíceis de conduzir com voluntárias por muito tempo. A pesquisa mais popular na área foi desenvolvida por 15 anos e acompanhada pelo professor francês Jean-Denis Rouillon com 300 mulheres de 18 a 35 anos de idade que vestiam ou não sutiã. A conclusão da análise, divulgada em 2013, indica que o material restritivo dos sutiãs pode atrapalhar, com o passar dos anos, o crescimento de tecido na região mamária, o que impede os seios de assumirem sua posição naturalmente elevada.


Em outras palavras, há pesquisas que indicam que usar sutiã pode fazer com que os seios caiam, enquanto não há estudos conclusivos que determinem que a ausência do sutiã provoque flacidez. Ou seja: é exatamente o oposto do senso comum.


Já que a teoria de seios flácidos caiu por terra, então podemos todas sair por aí sem sutiã. Certo? Não.


A real razão para usar sutiã


Em algum momento, todas nós tivemos contato com a imagem popular da “feminista queimadora de sutiãs”. A origem da história é de 1968, durante o Miss America em Atlantic City, Estados Unidos. Na ocasião do evento, mulheres organizaram um protesto que consistia em jogar na “lixeira da liberdade” (no original, Freedom Trash Can) objetos que promoviam a opressão das mulheres, como batom, salto alto e — isso mesmo — sutiãs.


A manifestação criticava dez pontos sobre o concurso de beleza, sendo racismo um deles: “Desde sua concepção em 1921, a cerimônia não teve uma finalista negra. Nunca teve uma vencedora porto-riquenha, alasquiana, havaiana ou mexicano-americana. Nunca houve uma Miss Americana verdadeira — uma nativo-americana”, descrevia o manifesto das mulheres.


A organizadora Robin Morgan declarou, em entrevista à BBC no aniversário de 50 anos do acontecimento, que as mulheres do protesto não queimaram nenhum dos artigos descartados no lixo. Entretanto, alguns jornais que cobriram a manifestação na época divulgaram que houve um “pequeno incêndio, que foi rapidamente apagado”.


Havendo incêndio ou não, é indiscutível que a figura da “feminista queimadora de sutiã” se perpetuou no imaginário coletivo por incomodar tanto. O desconforto dessa ideia desafia muito mais do que a mera noção de “peitos caídos” porque, no fundo (ou na “superfície”, mesmo) todo mundo sabe que o sutiã é muito mais que isso.


Afinal, qual seria o problema se os seios realmente caíssem com a falta de sutiã? As principais reclamações de dores peitorais de mulheres consistem em desconforto com sutiã ou com o peso dos seios. Se pararmos para pensar, o seio caído não traz dor — não de verdade. O incômodo real é puramente estético, sem consequências graves para nossa saúde.


Sextou pode significar liberdade de outra forma... Como não usando sutiã. Foto: Reprodução

A quem agradamos nos submetendo a esse “instrumento de tortura”? Com certeza não é a nós mesmas, que sofremos com marcas de sutiã nas costas e com elásticos pinicando a pele. A suspensão de peitos em iminência de queda e esse correr inútil contra o tempo e natureza favorece a imagem idealizada que homens têm do corpo feminino. Essa visão é única, e não aceita a existência da variedade de mamas. É essa a real razão para usar sutiã, que é incutida em nossas mentes desde jovens. Por isso as supostas “feministas queimadoras de sutiã” repudiavam a peça de roupa — porque elas questionavam sua verdadeira usabilidade.


As mamas perfeitas são artificialmente elevadas ao bel prazer masculino e são sexualizadas justamente por provocar o desejo do homem. Que fique claro que isso não acontece por iniciativa da mulher: somos ensinadas a vestir sutiã desde jovens sem um motivo claro e plausível e, como minoria social no patriarcado, não temos direito ao controle pleno de nossos corpos. Quem nunca saiu de casa com alguma roupa favorita e teve o desprazer de receber olhares pervertidos e indesejados?


Quem tem seios pequenos já ouviu, seja de algum primo maldoso ou colega da 5ª série, a frase “por que você usa sutiã se não tem nada para esconder?” Não havendo comprovação científica de que seios caídos são prejudiciais à saúde e nem prova de que o sutiã de fato levanta o seio, isso apenas denuncia como a roupa é responsável por censurar as mulheres.


O desenvolvimento do seio e o ato de começar a vestir sutiã pode ser visto como um marco na transição de menina para mulher, e mostra como a sociedade nos obriga a ocultar algo completamente natural — que é o corpo feminino. Não usar sutiã é, então, repúdio em dobro por rejeitar a ideia de mamas idealizadas e sexualizadas, pois a dupla função da roupa é elevar seios e escondê-los por supostamente distrair as pessoas. A atriz Dove Cameron, por exemplo, já foi atacada no Instagram por postar uma foto em que a silhueta de seus mamilos era visível pela blusa. Em resposta, Dove declarou que aquilo era nada demais, e que mulheres deveriam se aceitar como são.


Mas nem é preciso recorrer aos excepcionais famosos para constatar a opressão viabilizada pelo sutiã — você já viu quantos casos existem de meninas que foram à escola sem sutiã e terminaram acusadas de “distrair alunos e professores”?


Um esconderijo vergonhoso


Que o sutiã não favorece realmente o levantamento das mamas já entendemos. A questão, então, recai sobre a necessidade de esconder os seios crescentes das meninas. Tanto é que vamos à praia sem blusa, até que, quando chegamos perto da pré-adolescência, ouvimos que já somos “quase mocinhas” e não podemos mais.


Nós, mulheres, somos sempre ensinadas a nos esconder. A nos adaptar e alcançar padrões de beleza inalcançáveis. Já vimos aqui, que até nossa vagina vive sob esse sistema rigoroso de fiscalização. Nossos peitos, então, nem se fala… O Brasil lidera rankings de cirurgia plástica e, segundo a Sociedade Internacional de Cirurgia Plástica, quase 20% dos cirurgiões já colocaram silicone em meninas menores de idade.


É um paradoxo completo. Temos que ter peitos bonitos e grandes, tanto que meninas de 16 e 17 anos correm para a faca por todo o mundo para aumentá-los. Mas ao mesmo tempo, é imprescindível o uso do sutiã para esconder a região. Devemos mostrar apenas um pouco, “deixar o mistério”, seja lá o que isso significa


A única coisa que sei é que não somos ensinadas a amar nosso corpo. Nossas mamas caem, dificilmente são do mesmo tamanho e nossos mamilos e aréolas podem ser bem grandes ou bem pequenos. Além disso, eles não são todos rosinhas, tal qual os da maioria das atrizes pornôs - um estereótipo mesquinho e, claro, racista. Somos apenas ensinadas a sentir vergonha.


É isso que o sutiã esconde: a variedade do corpo feminino. Foto: Reprodução

Como falamos aqui, quase toda menina passa pelo momento em que começa a ser cobrada a usar sutiã. Seja essa época uma lembrança boa, na qual você vai ao shopping com sua mãe e compra uma peça bem bonita, ou seja essa recordação estranha, que você lembra apenas de se sentir presa e incomodada.


Nessa hora, além da própria cobrança de usar o sutiã, vem também a necessidade de escondê-lo. Porque sim, temos que usar a peça, todo mundo sabe que estamos usando, mas temos que esconder esse detalhe ao máximo. “Filha, sobe a camisa que a alça do sutiã tá aparecendo”, “essa blusa regata só dá pra usar com sutiã nadador, se não aparece tudo”.


Uma vez, ouvi que a cultura dieta é um mecanismo de controle dos corpos femininos. Um corpo que não se alimenta, não luta. Penso que o sutiã pode ser visto assim também. Um corpo sem liberdade de se movimentar, que deve se atentar a se cobrir e não mostrar demais, que deve se atentar a não ser provocativo, não tem tempo para lutar.


A grande questão é que não é simples usar o sutiã, nem deixar de usá-lo. Eu, Luísa, pessoalmente nunca me dei com a peça. Ainda uso com algumas roupas, em alguns contextos no quais me sinto mais persuadida a vesti-lo, mas sempre que consigo, saio sem. Mas, no começo, apesar de ter sido ótimo sentir a liberdade, veio uma culpa. E uma mania de perseguição. Sentia que muitos olhavam para os meus mamilos marcados, me julgando de alguma forma. Aposto que vários desses olhares foram reais, mas talvez a maioria tenha partido da minha cabeça.


Porque não é tão fácil assim abrir mão do sutiã. Foto: Reprodução

Novamente, é complexo, é um paradoxo. O sutiã pode ser uma peça para esconder o peito e evitar sexualização, não usá-lo pode ser visto como provocativo. Porém, ao mesmo tempo, sair com os peitos marcados, sem “proteção”, pode também ser encarado como desleixo e te fazer menos mulher, menos recatada.


Quer deixar ainda mais difícil? Usar um sutiã pode ser uma vitória simbólica para mulheres trans que optaram, ou não, por colocar mamas. Também, mulheres sobreviventes de câncer de mama que tiveram que passar pela mastectomia podem encontrar liberdade ao vestir a peça. Mas, até mesmo você que está lendo, pode não ser uma mulher trans, nem ter retirado a mama, mas adorar usar um sutiã bonito. Te dá autoestima, te deixa confortável. E tudo bem também.


O propósito é só pensar do porquê somos ensinadas a usar a peça, às vezes antes mesmo até de termos peitos para preenchê-las. Por que nossas mamas não podem cair? Por que a alça do sutiã não pode aparecer? E por que meu mamilo marcado na camisa, nos dias que não uso sutiã, podem ser tão sexualizados?


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Já pensou como a vida seria muito mais simples se a gente falasse mais sobre alguns tabus? Esse é um dos objetivos da categoria 'Taburóloga', que conta com textos quinzenais!

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