Resenha: "Uma Questão de Química" é uma história feminista sobre coragem e empatia
Livros bons e inteligentes são verdadeiros achados. Com capa simples e discreta, “Uma questão de Química” (Arqueiro, 2022), da Bonnie Garmus, é um deles. Para completar, a história inspirou série na Apple TV+, protagonizada brilhantemente por Brie Larson ("Carpitã Marvel").
Pela sinopse você fica sabendo que a trama gira em torno de uma cientista que “só quer realizar sua pesquisa em paz” se não fosse o machismo da comunidade científica e das pessoas ao seu redor. Corta para anos depois — e isso também está na sinopse —, Elizabeth Zott se vê criando uma filha sozinha e com uma rede de apoio limitada a um cachorro e uma vizinha da casa à frente. Tamanha é a imprevisibilidade do destino, ela está prestes a se tornar uma das maiores estrelas da TV americana ao aceitar a oportunidade de apresentar um programa de culinária. Sua missão? Ensinar donas de casa a preparar a melhor refeição para o marido e os filhos.
Pode parecer até piada em um primeiro momento. Mas o que vem nesse gap, e isso você pode imaginar, é um turbilhão de acontecimentos que realmente pegam o leitor de surpresa, incluindo uma história de amor. É como se fossem pequenos plot-twists acontecendo em diferentes áreas da vida de Elizabeth logo nas primeiras páginas, mas que serão importantes para o momento presente, em que ela precisa tomar a decisão de aceitar ou não o emprego na televisão. Passado e presente se misturam a todo instante na trama sem hora ou aviso prévio. Mas a escrita fluida ao mesmo tempo cheia de referências da autora indica o caminho a quem lê.
Quando aceita o emprego, Elizabeth Zott não ensina simples receitas. Ela ensina Química. Enquanto revela as inimagináveis e numerosas ligações químicas presentes em uma refeição para uma gama de donas de casa subestimadas, escancara o machismo estrutural da sociedade. Ali, naquele estúdio ou no sofá de casa, elas têm seu trabalho doméstico valorizado. Mas, claro, nem tudo são flores. Elizabeth vai incomodar e se sentir incomodada na mesma proporção.
Assim, Bonnie também conta a história de uma parte das mulheres estadunidenses das décadas de 1950 e 1960 assoladas pela mística feminina, como diria Betty Friedan*. Apesar da sensibilidade e inteligência com que traduz esse sentimento — abordado na literatura do período compreendido como segunda onda feminista —, o recorte de classe e raça não fica explícito. Não obstante, ganha espaço relevante na série da Apple TV+ com a adaptação do arco original da personagem de Harriet, vizinha de Elizabeth, ao colocá-la com maior projeção e com uma história só sua.
Em um cenário completamente hostil para mulheres, é importante lembrar que violências de todo tipo ocorrem. Na trama, elas também são retratadas — talvez de maneira até mais explícitas do que na série, o que pode servir de gatilho. Mas que fique claro que tais cenas não são colocadas de maneira aleatória e/ou glamourizada como a gente cansa de ler e assistir por aí. Elas causam desconforto e possuem um ponto, uma intenção em estar ali.
Foi um livro que me emocionou em diversos momentos e por diferentes motivos. Desde a luta diária da personagem em se estabelecer no âmbito profissional até a relação construída com suas espectadoras, com a filha e, particularmente, com o cachorro Seis e Meia. Acima de tudo, é uma história sobre coragem e, nas palavras de sua protagonista, “a coragem é a raiz da mudança, e somos quimicamente programados para mudar”.
Nota: 5/5
*Para a jornalista e ativista feminista Betty Friedan, havia um "problema sem nome" pelo qual sofria as mulheres estadunidenses. Um desejo vago e indefinido refletido nas crises de identidade compartilhadas por um grupo específico de mulheres (classe média, escolarizadas, brancas - vale lembrar). Crises fomentadas pelo retorno forçado aos modelos de feminilidade e à vida doméstica no contexto pós-Segunda Guerra. Mesmo com marido, filhos, carreira, algo ainda faltava. A esse sentimento, Friedan atribuiu o nome de "mística feminina", que dá nome a sua obra mais famosa.
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