Precisamos conversar sobre o apagamento lésbico e bissexual
17 de maio é o Dia Internacional de Luta contra a Homofobia, Transfobia e Bifobia - de maneira geral, contra a LGBTfobia. Mas, como sempre, há um protagonismo nesse dia. Vamos fazer um exercício. Quero que você diga a primeira imagem que vem na sua mente quando pensa em uma parada LGBTQI+. Pode ter sido a bandeira colorida. E pode ter sido também um homem branco gay afeminado. E é sobre isso que precisamos conversar.
Eu gosto muito dessa charge porque acho que resume bem a visibilidade do movimento LGBTQI+ e de tempos em tempos ela me vem à mente. Veja bem, eu odeio divisões e brigas entre as minorias. Elas não agregam nada a nossa luta diária e, enquanto brigamos, eles seguem se beneficiando. Mas é impossível não falar do apagamento lésbico e bissexual na sociedade, no movimento e no entretenimento.
Onde estamos na TV?
A organização GLAAD (Gay & Lesbian Alliance Against Defamation) faz um relatório midiático anual para mapear os personagens que representam minorias em séries norte-americanas. O “Where We Are On Tv” de 2019 alcançou números inéditos em 15 anos de pesquisa, mas ainda é decepcionante. Dos 879 personagens regulares listados, apenas 10,2% são LGBTQI+. Aí nas séries de TV, 38% são homens gays, 33% mulheres lésbicas e 25% bissexuais. Nos serviços de streaming os números não mudam muito: 42% gays, 30% lésbicas, 24% bissexuais e 1% assexual.
Apesar de recordista, o número de 10% é quase nada. E o “equilíbrio” entre os representantes LGBTQI+ não quer dizer que está tudo bem. Como o próprio relatório ressalta, bissexuais são muito mal representados na TV e geralmente reproduzem estereótipos que propagam a bifobia. Isso sem falar que uma pesquisa feita pelo The Williams Institute mostra que bissexuais são maioria entre os LGB, com 52%, e no entretenimento não temos esse protagonismo.
Bandeira do Orgulho bissexual e símbolo utilizado pelas lésbicas.
Como estamos na TV?
Agora vem outro problema: como são representadas as lésbicas e os personagens bissexuais nas séries. Além da hiperssexualização de mulheres lésbicas (porque não tem nada mais sexy que duas mulheres padrão se pegando, não é?), há ainda a propagação do principal estereótipo: a mulher masculinizada. Quantas personagens de cabelo curto e roupas largas você consegue pensar que interpretam uma sapatão? Eu acho que não preciso nem explicar o porquê disso ser tão problemático.
E sobre a representação de bissexuais, trago mais dados da GLAAD. Dos (apenas) 128 personagens bissexuais encontrados, 70% são mulheres, 28% homens e 2% não-binários. Essa discrepância entre homens e mulheres deriva, claramente, de uma hiperssexualização da mulher bissexual e um apagamento do homem bissexual. Uma mulher que pega homens e outras mulheres “por diversão” é o sonho de todo homem hétero. Mas um homem bissexual… Bem, talvez ele seja só gay mesmo, né? Não. Bissexuais existem!
E aí entramos em mais uma problematização: a representação dos bissexuais, que, em sua maioria, propagam estereótipos complicados. O mais clássico é o uso da bissexualidade como um recurso temporário para a história - que encaixa no estereótipo de que bissexuais apenas estão “confusos” - e, eventualmente, são definidos como héteros ou homossexuais. A gente pode ver isso em Orange is the new black, com Piper que nunca usou o termo “bissexual” para se definir e foi chamada de “hétero” por Alex e “lésbica” por Larry (seu ex-noivo). Em Grey’s Anatomy também: em uma cena Callie chega a falar que Arizona é “uma lésbica melhor que ela”, já que não se atrai por homens. Já pensou que você pode ser >>>bissexual<<<?
Outro estereótipo muito usado de bissexuais - em séries queridas do meu coração, admito - é de que são pessoas calculistas, obsessivas, gananciosas e viciadas em sexo. Ou seja, usam o sexo como uma ferramenta de poder ou só não querem se limitar a “um tipo de prazer”. Onde estão esses personagens? Em Game of Thrones, temos Oberyn Martell que é retratado como um homem de apetite sexual insaciável que busca prazer em todas as formas. Em O Mundo Sombrio de Sabrina, Ambrose já teve relações com homens e mulheres e também é retratado com bastante apetite sexual - assim como outros bruxos e bruxas. Frank Underwood em House of Cards disse que “sexo é poder”. E o que une todos eles? Nunca usaram nenhum termo do guarda-chuva bissexual para se definirem.
Ambrose (Chance Perdomo) e Oberyn (Pedro Pascal) são homens que buscam o prazer.
Bem representadas!
Mas não vim só reclamar e falar mal, não. Uma das minhas séries favoritas é também uma das que melhor retratou um personagem bissexual e sua saída do armário. Sim, estou falando de Brooklyn Nine-Nine. Rosa é uma personagem latina e bissexual e o episódio em que ela se assume é simplesmente lindo - fico emocionada só de lembrar. É real, sabe? A família tem dificuldade de aceitar e os amigos são acolhedores. E o melhor: na série nada muda. É óbvio que menções e aparições de mulheres com quem Rosa se relaciona aparecem, mas nada em seu comportamento e personalidade mudam. Rosa segue sendo a Rosa que sempre foi.
Gosto bastante da representação de Amanita e Nomi em Sense8 também. Uma personagem preta e lésbica e uma trans lésbica que se apaixonam e vivem uma história de amor. Mas não é a isso que se resumem suas personagens. E ainda trazem a questão da sexualidade de pessoas trans, que nada tem a ver com identidade de gênero (triste ter que reafirmar o óbvio). Há, inclusive, uma cena em que uma amiga de Amanita ataca Nomi falando que não quer que “um homem colonizador tome o espaço de uma mulher”. Ou seja, não a enxerga como uma mulher e provavelmente não enxerga o relacionamento delas como lésbico.
We’re here, we’re queer!
Bem, acho que fiz o meu ponto. A comunidade LGBTQI+ é muito mais do que só o G. Não venho valorizar uma luta em detrimento de outra, só acho importante reafirmar que as demais letras (que representam pessoas reais!) existem e merecem respeito e visibilidade. Ser desrespeitado dentro uma comunidade que se afirma como acolhedora é difícil e não precisamos de homens gays diminuindo a luta de uma mulher lésbica ou de um bissexual por se aproveitar de “privilégios héteros”.
Essa nova onda de representatividade em filmes e séries é ótima, mas deve ser analisada criticamente. Representatividade por representatividade não adianta nada se não vier acompanhada de uma desconstrução e quebra de estereótipos. Crianças e jovens querem se ver representados na TV e eles merecem se ver humanos, complexos e mais do que só a sua sexualidade. Até porque é o que somos. Estamos aqui, somos queer!
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