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Foto do escritorBeatriz Cardoso

Labioplastia e o mito da vulva vulgar

[Este texto se baseia na minha vivência como mulher cis. Mulheres sem vulvas e homens com vulvas (como no caso de transexuais que não realizam a cirurgia de readequação sexual, por exemplo) existem na sociedade e também sofrem opressão. Contudo, como esse não é o meu lugar de fala, essas questões não serão abordadas neste texto. Caso deseje compartilhar algo conosco, envie uma mensagem para o e-mail telasporelas@gmail.com]


“Procedimento que envolve a remoção parcial ou total da genitália feminina externa, ou qualquer outro ferimento realizado aos órgãos genitais por motivos não-médicos”. É assim que a Organização Mundial da Saúde (OMS) define a mutilação genital feminina — mas, se desconsiderarmos as últimas palavras em itálico, bem que essa poderia ser a definição da labioplastia.


Não conhece a labioplastia? Então jogue no Google. Você logo será soterrada por sites e mais sites de cirurgiões plásticos famosos (e ótimos em SEO, diga-se de passagem) que alegam ter a solução para todos os seus problemas de insegurança quanto a suas partes íntimas.


A labioplastia, conforme os médicos descrevem, consiste em um procedimento cirúrgico para cortar fora uma parte dos lábios menores da vulva. Falando assim parece ser bem assustador, né? Mas pode ficar tranquila que os cirurgiões sabem muito bem como vender seu peixe: “é uma cirurgia bem rápida, é só uma hora na mesa! E é bem fácil e seguro, apesar de precisar de anestesia geral”.


A descrição da cirurgia é acompanhada pela enumeração de supostas dificuldades que incentivam mulheres a optarem pela labioplastia, como problemas nas relações sexuais e na higienização íntima, ou na hora de vestir roupas justas e praticar esportes. A hipertrofia dos lábios menores (como os médicos chamam a condição em que os pequenos lábios ultrapassam o tamanho dos grandes lábios) é demonizada pelos doutores por causar dor e desconforto às mulheres.

A labioplastia remove parte dos pequenos lábios. Foto: Reprodução

O que os cirurgiões plásticos não informam sobre o tal procedimento milagroso? A labioplastia pode resultar em cicatrizes permanentes, infecções, sangramentos, irritação da vulva e até mesmo danos aos nervos de forma que provoque sensibilidade maior ou menor que o usual. E sabe o que mais eles escondem? Que, apesar da lista dissimulada de dificuldades, uma pesquisa feita pelo International Journal of Women’s Health em 2008 indica que 37% das mulheres realizaram labioplastia por motivos meramente estéticos.


De 2015 para 2016, o número de labioplastias cresceu em 45% a nível mundial. O Brasil está em segundo no ranking de países que mais fizeram o procedimento em 2016, com mais de 13 mil cirurgias íntimas. O nosso país, ao lado de Estados Unidos, Japão, Itália e México, equivalem a cerca de 41% de todas as cirurgias plásticas realizadas no mundo.


A questão não é apenas o aumento da procura por labioplastia, mas quem a procura. Números da American Society of Plastic Surgeons mostram que, em 2016, mais de 5% das 12.666 labioplastias realizadas nos Estados Unidos foram feitas em adolescentes com menos de 16 anos.


Vamos voltar alguns parágrafos atrás. Se lembra quando eu te mandei jogar “labioplastia” no Google? Pois é, eu também fiz isso na hora de pesquisar para escrever esse Taburóloga. Como o nome dessa categoria já denuncia, minha intenção desde o início foi problematizar esse tabu. Sabe quantos links na primeira página do Google me ajudaram a questionar a labioplastia? Zero. Nenhum. Nada.

"Você é feia". A labioplastia é popular entre jovens. Ilustração: Sian Butcher

Se eu, que já repudio a prática, tive que recorrer a buscas como “labioplastia ruim”, “labioplastia crítica” e outras mais para obter alguma informação decente, qual deve ser a experiência no Google de jovens vulneráveis que se sentem inseguras com seus corpos e cometem decisões impulsivas? Elas nem sequer têm chances de chegar a textos críticos sobre a labioplastia. Essas garotas serão impedidas pelas mil páginas de centros de plástica que lucram com a baixa auto-estima alheia.


Então, essas garotas vão fazer a labioplastia, limpar no banho sua vulva reconstruída com sabonete íntimo com perfume de lavanda e fazer uma virilha total a laser. Porque a vagina não é bonita, porque a vagina não cheira bem, porque a vagina não pode ter pelos.


Eu tenho algumas coisas para contar a essas garotas.


O que é a vagina?


Vamos começar do começo. O que é a vagina? Essa pergunta pode soar meio desnecessária — mas ela não é. O que todo mundo chama de vagina é, na verdade, a vulva. Sabe os lábios, o clitóris, os orifícios e os pelos? Pois é, isso tudo é a vulva.


A vagina em si é o canal de onde sai o sangue durante a menstruação e o bebê durante o parto “normal”. E é lá que entra o pênis, os dedos e outras coisas mais durante o sexo e/ou masturbação.


Outra parte importante de tratarmos agora sobre a anatomia feminina são os lábios menores e maiores. A labioplastia acontece principalmente nessa área da vulva, e remove parte da carne dos lábios menores quando estes são mais longos que os lábios maiores. Os pequenos lábios têm como objetivo proteger o vestíbulo da vulva (onde ficam a vagina e a uretra) de infecções e escoriações.

Foto: Reprodução

Se nós sequer usamos o termo certo para nos referirmos a nossas partes íntimas, a pergunta “o que é a vagina?” é extremamente relevante. Afinal, eu aposto que você não confunde o escroto com o pênis, certo?


Minha mãe uma vez me perguntou se eu alguma vez peguei um espelho para olhar “lá embaixo”. Eu nunca tinha feito tal coisa e isso me confundiu — ora, não tem como eu desconhecer uma parte do meu corpo, né? Ela então me contou que, na primeira vez que foi ao ginecologista beeem novinha (com uns dez anos), a doutora perguntou se ela tinha curiosidade de ver. A minha mãe respondeu que sim.


Hoje eu sei que o questionamento da minha mãe é de extrema importância e toda menina deve passar por essa experiência. A labioplastia está lado a lado com protetores diários, sabonetes íntimos, duchas vaginais etc. Esses produtos são extensão da pressão estética sofrida por mulheres, e são intensificados pela falta de conhecimento que temos sobre nossos próprios corpos.


No caso da vulva, o que inflama a indústria cosmética é a busca pelo idealizado. Mas como seria a vulva perfeita?

Olá, Barbie. Cadê a sua vulva? Ilustração: James Worrell

A Barbie e a vulva vulgar


A vulva com lábios discretos e simétricos construída pela labioplastia se chama “Barbie” — e, idealmente, ela é 100% depilada. Ela é vista na Playboy, no Pornhub e, às vezes, até mesmo nos livros de Biologia do Ensino Médio. Se considerarmos que a Barbie é uma boneca (ou seja, ela é irreal) e a vulva dela é inexistente, o próprio termo já alerta que a busca pela vulva ideal é impossível — ou, pelo menos, era até a popularização da labioplastia.

Na Austrália, revistas pornográficas costumam manipular a imagem de vulvas para que elas apareçam como “meros vincos” no corpo da mulher, a fim de evitar que a capa seja coberta pelo típico plástico preto. De acordo com a regulamentação australiana, o pornô “leve” é categorizado por “mostrar apenas detalhes discretos de genitais” e, portanto, não precisa ser censurado em bancas de jornal — porque, aparentemente, mostrar um outro tipo de vulva seria vulgar.


Pesquisas indicam que outras revistas, em geral, têm a prática de “borrar” e “afinar” a região da virilha de mulheres em fotos com roupas justas porque seria “indesejável” mostrar o volume de lábios grandes — e basta um Photoshop para impor à imagem das mulheres a ilusão da (falta de) vulva da Barbie.


A tal “hipertrofia” dos lábios menores que os cirurgiões plásticos prometem “consertar” está presente, na verdade, em cerca de 50% das mulheres — então ela é muito mais comum do que os centros médicos informam. Há até uma discussão que questiona as nomenclaturas “lábios menores” e “lábios maiores” (mudando-as para lábios interno e externos, respectivamente), uma vez que elas denunciariam preferência a uma determinada vulva.


As vulvas, na realidade, podem ter vários tipos de lábios, de cores, de tamanhos. Mas onde vemos essa diversidade? Com certeza não é na pornografia nem nos livros escolares de anatomia.

Por que não vemos essa variedade de lábios nas aulas de Biologia? Foto: Reprodução

Não existe vulva ideal — e tem muita gente por aí espalhando essa mensagem


Como resolver essa situação? Como ajudar adolescentes que chegam a cirurgiões com pedidos tipo “corta tudo fora, porque eu odeio isso”? A questão em si não é a existência da vulva Barbie — é um privilégio, e não um problema, ter uma vulva considerada desejável —, mas o estabelecimento de um padrão para algo que deve ser (e é naturalmente) variado.


A ideia de “vulva exemplar” impõe às mulheres um modelo aprovado pelos homens e que não as atende. A quase onipresença da vulva Barbie invisibiliza e marginaliza os demais tipos de vulva. A boneca Barbie é alvo de muitas críticas, principalmente por seu corpo padrão que inspira a anorexia em tantas jovens no mundo todo, porém um problema dela que não abordamos o suficiente é a sua ausência de vulva.


Ela é um dos primeiros contatos que meninas têm com corpos nus (e isso vem beeem antes do pornô) e merece uma parcela da culpa pela idealização das vulvas. A ocultação de tal parte do corpo feminino fortalece a ideia de que as partes íntimas devem ser escondidas por vergonha ou suposta “feiúra” — e o mesmo não acontece com os homens, certo?


Para se ter uma noção, no Japão acontece todo ano o chamado Kanamara Matsuri, um festival que celebra o falo. Enquanto isso, a artista Rokudenashiko costuma fazer obras centradas na imagem da vulva e luta com a Justiça japonesa por ser constantemente acusada de “obscenidade” com sua arte. Ela chegou a ser presa após criar um caiaque baseado em um modelo 3D da sua própria vulva.


A principal forma de combater essa alienação (e opressão) de corpos femininos é por meio da comunicação: após notar o grande número de adolescentes interessadas na labioplastia, a Austrália passou a indicar a pacientes com menos de 18 tratamento obrigatório com psicólogo ou psiquiatra e “um momento de reflexão” de três meses antes da cirurgia.

Foto: Reprodução

A Royal Australian College of General Practitioners também mudou os critérios para realização da labioplastia, de forma que as mulheres sejam necessariamente informadas antes do procedimento sobre como os lábios da vulva podem ter cores e tamanhos variados. Estima-se que essa iniciativa tenha diminuído em 28% o número de labioplastias realizadas na Austrália.


O ensino sobre a variedade da vulva deveria acontecer principalmente nos livros de Biologia. Entretanto, o uso de diagramas vagos para demonstrar as partes íntimas e a ausência de informações importantes sobre os tamanhos e cores dos lábios tornam o estudo da anatomia na escola mais um dos obstáculos que terminam incentivando de maneira indireta a labioplastia.


Enquanto uma iniciativa do tipo não acontece nas escolas, a Internet pode ser um lugar para compreender que não existe vulva “certa” — e sim vulvas saudáveis com suas respectivas particularidades. Apesar de a web ser uma faca de dois gumes com o acesso fácil a pornôs com vulvas perfeitas, há muitas iniciativas online que buscam conscientizar mulheres sobre suas próprias partes íntimas.


The Vulva Gallery, por exemplo, é um Instagram com ilustrações de vulvas variadas, que são elaboradas a partir de e-mails de mulheres. O projeto é dx desenhista não-binárix Hilde Atalanta, e as imagens são acompanhadas de relatos sobre aprender a amar sua vulva como ela é, sobre descobertas sexuais e outras temáticas confessionais com que muitas pessoas podem se identificar.


Atalanta realizou uma “Semana da Anatomia” no começo de abril, com ilustrações diferenciadas sobre a vulva — coisa que deveríamos ver nos livros de Biologia. As publicações esclareceram fatos sobre vagina, clitóris, pelos pubianos, hímen e lábios, com recepção positiva das seguidoras.


Fazendo as pazes com a sua vulva


Ninguém se desconstrói da noite para o dia, e se você (infelizmente) odeia a aparência da sua vulva, sinto em informar que esse texto não é uma varinha de condão que levará seu desgosto embora em um passe de mágica. Amor próprio é um esforço constante em uma sociedade para a qual nunca somos boas o suficiente, e espero que facilite sua auto-aceitação compreender que há dados científicos a seu favor.


Para além de abominar cirurgias plásticas em geral e militar por um mundo “natural” (e crucificar o suposto artificial), é importante questionar a labioplastia por ser uma alteração tão íntima. É você quem convive com a sua vulva. Ela é sua. Ela deve agradar a você, e você apenas.


Se você deseja mudá-la e alega que é uma decisão própria sua, talvez seja a hora de refletir sobre como essa angústia é tão generalizada entre as mulheres. A labioplastia é apenas mais um produto do mercado que lucra diminuindo mulheres, e faz parte de um cenário muito maior do que uma insatisfação estética.


E, mais uma vez, é necessário enfatizar: 50% das mulheres têm lábios internos maiores que os externos. Assimetria labial (os lábios menores serem de tamanhos diferentes) é algo comum. Por que “corrigir” algo tão normal?


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Já pensou como a vida seria muito mais simples se a gente falasse mais sobre alguns tabus? Esse é um dos objetivos da categoria 'Taburóloga', que conta com textos quinzenais!


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