Dia da Mulher Negra: Rachel Reis fala sobre ser uma mulher preta na música
Por Filipe Pavão e Luísa Silveira
O que é ser uma mulher preta no Brasil? Possivelmente, as respostas devem variar de acordo com a região em que vive a mulher, a idade e classe social, mas, certamente, o machismo e o racismo estão presentes em seus discursos. Esse cenário não é diferente nos demais países da América Latina e Caribe, principalmente os que possuem maior população afrodescendente, como Colômbia e Venezuela.
Neste domingo (25), Dia Internacional da Mulher Negra, Latino-americana e Caribenha, o debate em torno das narrativas de mulheres pretas ganha força a fim de reforçar as conquistas do passado e projetar um futuro com menos desigualdades de raça e gênero. Na região em que 200 milhões se declaram afrodescendentes, os resquícios do período escravocrata se mantêm presentes nas estatísticas, principalmente sobre as mulheres.
Segundo a Organização das Nações Unidas (ONU), dos 25 países com os maiores índices de feminicidio do mundo, 15 ficam na região. Com o recorte de raça, a desigualdade se mostra ainda mais evidente em nosso país. De acordo com o Mapa da Violência, de 2016, os homicídios de mulheres negras aumentaram 54% em dez anos, enquanto os casos com vítimas brancas caíram 10%.
Aqui no Brasil, o 25 de julho ainda ganha um contorno especial: a memória de Tereza de Benguela. O resgaste da trajetória da quilombola, que lutou contra a escravidão no século XVIII e foi esquecida pela historiografia por muitos anos, reforça a importante de compreender a nossa ancestralidade para entender aonde vamos.
Retornando à pergunta inicial do texto, a cantora e compositora Rachel Reis, de 24 anos, fala com autoridade sobre o que é ser uma mulher jovem e preta na música. Nascida em Feira de Santana, na Bahia, estado com maior população negra do Brasil proporcionalmente, Rachel vê de perto como a indústria musical embranquece e elitiza a música produzida na região, em diversas situações, por pessoas pretas.
Rachel une a Bahia e o mundo a partir da sua sonoridade, que mistura pop, afrobeat e MPB. Na lista de influências musicais, vai de Gal Costa e Jorge Ben até Céu e Baiana System, passando pela artista cabo-verdiana Mayra Andrade. O resultado? Música pop com uma batida nordestina, futurista e tropicana, além de muita personalidade e potência. Presente nas nossas playlists há tempo, seu último lançamento é o EP "Encosta", que você pode ouvi-lo no final do texto.
No dia da Mulher Negra, Latino-americana e Caribenha, confira entrevista com a artista baiana.
Como nasceu a sua relação com a música? E o que te levou a seguir a carreira profissionalmente?
Apesar de vir de uma família ligada à música, tive dificuldade pra aceitar que aquilo poderia ser pra mim. Acredito que a maior delas foi me colocar em uma posição que pudesse gerar certo destaque - minha relação com a minha imagem foi extremamente conturbada na infância até o fim da adolescência, e isso me gera algumas questões até os dias de hoje (e dá-lhe terapia).
Olhando um pouco pra trás agora sinto que passei muito tempo na sombra de outras pessoas porque não me achava boa o suficiente, mas mesmo assim, eu gostava de cantar e tinha gente por perto que me incentivava a fazer isso. Um dia eu levei a sério e comecei a fazer apresentações em barzinhos na minha cidade. Não importava onde era o lugar, eu só queria cantar.
Passei uns dois anos fazendo isso, até que decidi que precisava compor, trabalhar em músicas próprias e, enquanto eu não levasse isso pra frente, eu não pararia. Até que em 2019 gravei as minhas primeiras músicas autorais: "ventilador" e "sossego". Desde então eu não me vejo fazendo outra coisa, mesmo no momento dividindo a minha atenção com a faculdade de Publicidade e Propaganda.
Como é ser uma mulher preta na música?
Ser uma mulher preta na música é saber que eu vou ter que me esforçar 10 vezes mais em tudo o que eu fizer. É viver com a ideia de que eu nunca vou ser só uma cantora e compositora, eu sempre vou estar incluída em categorias quando pensarem em mim: mulher e preta. Isso porque a indústria musical é, além de extremamente racista, machista também, e você nunca vai poder esquecer o seu lugar. Apesar da ideia de "caixas" já ter me gerado certo incômodo, eu entendo que negar isso é cair na falácia de que o racismo no Brasil não existe e que não é necessário que eu me imponha de tal forma. Claro que sendo uma pessoa de pele mais clara, o racismo não me ataca de forma tão incisiva e tenho certa passabilidade e tolerância em determinados locais. Mas não quero ser tolerada.
"Ser uma mulher preta na música é saber que vou ter que me esforçar 10 vezes mais em tudo [...] Eu sempre vou estar incluída em categorias quando pensarem em mim".
Você vive no estado com a maior população negra do Brasil, mas as cantoras do mainstream são brancas. Na sua opinião, a indústria musical é pautada pela branquitude?
Sendo baiana, eu cresci ouvindo axé por todos os lugares. Num estado com a maioria da população sendo negra, o ritmo mais popular por aqui foi embranquecido e elitizado. A gente se acostumou com a ideia de que era normal que pessoas que carregavam a “coroa” e ficaram conhecidas nacionalmente fossem pessoas brancas. Se aqui aconteceu isso, agora imagine a música de uma forma geral.
A grande mídia sempre vai visar o lucro. E, no raciocínio deles, o que gera dinheiro rápido é ser homem e branco (até o dia que eles acharam que se apropriar de pautas sociais pode gerar money pra eles também). Quase não se vê artistas negros no sertanejo e não existem tantas possibilidades quando se pensa em mulheres negras no pop, por exemplo. E as poucas que resistem no mainstream precisam trabalhar muito mais para tentar se equiparar com quem domina o grande mercado.
Quais atitudes podemos ter no dia a dia para mudar esse cenário na indústria da música?
Para a grande mídia eu tenho pouca esperança e muito pé atrás, mas acredito que as coisas possam melhorar um dia. Não vai ser logo e nem fácil. Aos poucos, com incentivo, com espaços como esse para que se possa falar de forma mais livre em relação às nossas impressões e ideias, a gente vai chegando em um lugar de caminhos mais abertos... Eu espero (risos).
"A grande mídia sempre vai visar o lucro. E, no raciocínio deles, o que gera dinheiro rápido é ser homem e branco".
Com a data e a homenagem a Tereza de Benguela, há o resgate da ancestralidade, evidenciando que só sabemos para onde vamos se sabermos de onde viemos. Artisticamente, quem te inspira, quem abriu portas para você estar aqui hoje?
Eu não teria como não falar da minha mãe, que é uma mulher negra e foi uma grande cantora aqui na nossa cidade. E só não foi mais longe porque o racismo não deixou! Sem me inspirar nela, sem uma visão sobre o que ela passou e superou sendo uma artista negra nos anos 1980 e 1990, eu jamais estaria aqui ou pensaria dessa forma.
Como você mostra a ancestralidade em sua arte?
Minhas músicas são sempre muito misturadas. Eu gosto da ideia de não ter um gênero específico e cantar de forma fiel a mim. Mas sempre vai ter algo do afrobeat ou axé. De alguma forma eu gosto de fazer com que as pessoas que me escutam saibam que a Bahia é o meu berço.
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