A violência silenciosa por trás da solidão da mulher negra
Como a herença escravocrata influencia diretamente na construção das afetividades
Começo esta narrativa dizendo que, se você é uma mulher negra, este texto está recheado de gatilhos. Porque sim, racismo é, em suas diversas formas, uma violência – como estupro, violência doméstica, homofobia – e pode sim despertar uma série de gatilhos. Racismo é um dos meus maiores gatilhos (se não o maior), e pode ser que seja o seu também.
Dito isto, peço licença para me colocar dentro desse texto, enquanto mulher negra que sou e totalmente atravessada pelo tema do Vamos Polemizar? de hoje. E é impossível dar início a este debate sem citar a gloriosa bell hooks que, em “Vivendo de Amor” (2010), foi altamente perspicaz ao dizer:
“Muitas mulheres negras sentem que em suas vidas existe pouco ou nenhum amor. Essa é uma de nossas verdades privadas que raramente é discutida em público. Essa realidade é tão dolorosa que as mulheres negras raramente falam abertamente sobre isso.”
Talvez a solidão da mulher negra seja, para muitos, um tema completamente novo, mas essa é uma das muitas formas de violência que o racismo proporciona desde os tempos da escravidão, e eu diria que a mais silenciosa.
Herança escravocrata
Como já se sabe, não há como desassociar o racismo da escravidão. Então, o primeiro ponto a ser entendido é que a vida afetiva das mulheres negras é uma questão histórica e coletiva – nunca individual –, que foi herdada do período colonial como um fardo. Se sabemos que o processo de miscigenação foi promovido pelo estupro de mulheres negras, é muito ingênuo acreditar que isso não tenha deixado marcas profundas.
O segundo ponto a ser observado é que o papel social da mulher negra influencia diretamente na construção de suas relações, sejam elas românticas, de amizade, familiares ou profissionais, além de sua relação consigo mesma. Mulheres que, há séculos, são definidas por sua força braçal, destinadas a servir e cuidar da branquitude, sem a possibilidade de serem cuidadas. E é preciso dizer que esse lugar é, acima de tudo, solitário.
Preterimento e Hipersexualização
Segundo bell hooks, a falta de amor é o motivo da vida da mulher negra continuar sendo um enfrentamento tão difícil, porque é o amor que nos faz desejar viver, e não apenas sobreviver. Mas raramente as pessoas se preocupam em promover mudanças sociais que “nos permitam viver plenamente”.
O maior exemplo disso é a hegemonia do padrão de beleza eurocêntrico. A beleza sempre foi negada ao corpo negro, e juntamente com isso, o direito ao amor-próprio. E isso se reflete diretamente na vida amorosa das mulheres negras desde muito cedo, sabendo que, pela lógica, só existem dois caminhos: o preterimento ou a hipersexualização.
Eu sempre me divirto muito quando vejo surgirem nas trends assuntos a respeito das relações na adolescência e juventude. Me divirto porque, para mim, soa quase como uma piada. As pessoas realmente não conseguem enxergar as afetividades como algo construído. E se esse espaço é um legado colonial que implantou no imaginário social a perspectiva da mulher ideal para amar, ele sempre será negado à mulher negra. É negado quando uma menina negra nunca é escolhida para ser par de uma quadrilha. É negado quando a criança mais feia da turma sempre é uma menina negra. É negado quando os traços característicos da negritude são motivos de chacota desde a infância.
E esses não são exemplos escolhidos ao acaso. Ninguém me contou. Eu vivi cada um deles e muitos outros. Posso até exemplificar algo muito específico que eu nunca me esqueci. Uma vez, no ginásio, fizeram um anúncio antes das aulas começarem. Uma das garotas valentonas do último ano faria o “teste do pente” na hora do recreio. O teste consistia em passar um pente no cabelo de todas as garotas e ele não podia ficar preso entre os fios. Eu não faço ideia do que aconteceria com quem ficasse com o cabelo preso no pente porque eu não fiquei para ver. Me escondi o recreio inteiro. E é importante frisar que isso aconteceu em uma escola com alunos predominantemente negros. O racismo está enraizado em todos os lugares.
Seguindo esse raciocínio, se você perguntar a uma mulher negra como foi sua adolescência (e aqui falo sob um olhar heteronormativo), quantos namorados ela teve, quantos garotos beijou, te garanto que a resposta será quase sempre a mesma. O fato é que mulheres negras só deixam de ser preteridas quando passam a ser hiperssexualizadas.
E é muito interessante observar a reação de pessoas brancas quando descobrem que mulheres negras chegam a fase adulta com pouquíssimas experiências amorosas. É interessante porque elas normalmente não acreditam. Porque “não parece”. E aqui estamos falando de uma visão baseada na ideia de que mulheres negras têm “cara” de serem muito experientes, sexualmente falando, ainda que não tenham tido relacionamentos públicos. Mas deixa eu te contar que essa visão tem nome. Nem preciso dizer qual é, né?
A questão é que, mais uma vez como herança do período colonial, normalmente a mulher negra é vista como detentora do prazer sexual, e que, historicamente, só pode ser amada em segredo. Um bom exemplo disso são os diversos relatos e situações protagonizadas dentro do BBB 22 pela participante Nathalia Deodato. Desde o início do reality, a sister tem deixado claro como seu corpo sempre foi hipersexualizado, como seus sentimentos são deslegitimados, como o afeto lhe é negado, como ela sempre precisa ser forte. Mas isso, é claro, se você tiver o olhar cuidadoso e sensível para enxergar a dor dessa mulher para além da “histeria” e da falta de inteligência emocional.
Anonimato e pouco amor
“Muitas mulheres negras sentem que em suas vidas existe pouco ou nenhum amor” e te garanto que essa é a verdade mais difícil de encarar. É importante que se entenda que o amor romântico é e sempre foi pensado para mulheres brancas. E isso não é apenas uma teoria, é um fato. De acordo com o IBGE, cerca de 61% das mães solos no Brasil são negras. E esse é um fenômeno social, ao meu ver, quase que autoexplicativo. A mulher negra vive à margem de tudo, inclusive do amor. É a personificação do prazer carnal – e impuro, se considerarmos o ideal conservador e puritano – mas nunca a escolhida.
O anonimato é uma pauta muito frequente na vida amorosa de mulheres que se acostumaram a sempre serem escondidas. E isso explica, por exemplo, porque o ato de não postarem uma foto com você numa rede social – prática totalmente característica da geração atual – pesa tanto. A mulher negra sempre tem a sensação que está sendo ocultada. Porque, na maioria das vezes, está mesmo. O racismo mora na realidade que garante à mulher branca o benefício de sempre ser assumida, enquanto a mulher negra conta com a sorte.
O amor que foi reservado para a mulher negra é um amor pequeno, um amor cômodo e sem cobranças (para o outro), um amor unilateral. E não é difícil entender porque uma parcela da sociedade que sempre foi tida como cuidadora, e nunca digna de cuidado, aceita isso. De certa forma, o racismo não só influencia a ideia do outro, mas também afeta o imaginário da própria mulher negra que acredita que é o suficiente. O medo da solidão tira de nós a coragem de dizer que é pouco. E é justamente o fato de amarem muito mais do que são amadas que faz de mulheres negras inseguras e certas de que precisam ser perfeitas para serem aceitas (porque realmente precisam).
A síndrome da perfeição e o fardo da mulher guerreira
É muito cruel a necessidade que mulheres negras têm de serem melhores em tudo dentro de um relacionamento – e na vida –, mas nem mesmo a perfeição ser suficiente. Para mulheres negras serem vistas e estarem no mesmo patamar que mulheres brancas precisam ser excepcionais, precisam ter uma beleza singular, precisam ter um corpo exuberante, precisam sempre se vestir de forma impecável, precisam ter uma inteligência acima da média, precisam ser altamente competentes e talentosas, e ainda assim, não bastará. Porque tem algo essencial que nunca conseguiremos ser: branca.
A trajetória de Beyoncé, incontestavelmente uma das maiores artistas de todos os tempos, e frequentemente boicotada pela premiações, segue sendo o melhor exemplo para comprovar isso. CRUEL. É cruel porque nos foi negado tudo! À mulher negra foi negado o direito de falhar, de ser fraca, de ser frágil, de ser medíocre, de ter aparência despojada, de ser protegida, de ser amada.
E recortando um desses direitos negados, eu tenho certeza que você já elogiou a força de alguma mulher negra do seu convívio. Mas já parou para pensar que esse também é um espaço reservado para nós? A mulher negra está sempre superando adversidades, está sempre remando contra a maré, está sempre suportando o que a maioria não suportaria. “Guerreira”, vocês dizem. Mas isso é justo? É exatamente essa visão de que a mulher negra tem uma força inesgotável que não permite que ela seja digna de afeto. Afinal de contas, ela não precisa. Ela é forte. Ela se vira sozinha. Apenas as belas princesas doces e meigas precisam de proteção. E as mulheres negras se acostumaram tanto a isso, que a melhor forma de se proteger dessa dor é acreditar que só os ingênuos precisam e esperam receber amor.
O mito da agressividade da mulher negra
E já que estamos falando de justiça, é necessário apontar para um estereótipo dado a toda mulher negra que escolhe se rebelar contra o pequeno espaço reservado para ela. Colocar mulheres negras num lugar de agressividade – socialmente construído para elas – é o que as condenam à solidão perpétua. Essa figura amedrontadora que pessoas brancas enxergam em mulheres negras também é racismo.
E aqui eu vou além do amor romântico. Como uma mulher que dá medo tem amigos?
Se eu sou tida como uma pessoa agressiva de forma individual, isso é um problema meu para resolver na terapia. Mas se, curiosamente, toda mulher negra que se posiciona é julgada como agressiva, então esse é um problema seu, pessoa branca. Se as pessoas têm medo de mim tanto quanto têm medo da minha única amiga negra, esse é um problema nosso ou um problema delas?
Você tem medo por quê? Porque uma mulher negra é assertiva? Porque ela não distribui sorrisos? Porque ela discorda de você? Porque a mulher negra foi sentenciada a uma posição de serviços braçais você acha que ela vai te bater a troco de nada? Por acaso nós somos animais irracionais?
Você tem medo de quê?
Mas de certa forma, eu entendo. A sociedade tem medo da raiva que move a mulher negra. Porque são raivas sociais e podem ser catalisadoras de mudanças significativas. E você pode se perguntar “raiva de quê?” – se bem que se você leu até aqui, já consegue ter uma ideia. A vida da mulher negra é, sobretudo, cansativa, e a raiva é o que nos mantém de pé. É a raiva que nos faz resistir a uma escravidão mal abolida. É a raiva que faz com que nos esforcemos a exaustão para ocupar lugares que não foram feitos para nós. É com raiva que enfrentamos o espelho todos os dias na certeza de que a construção do belo nunca irá nos alcançar. É a raiva que nos faz suportar a solidão e todo o afeto que não temos.
Você é quem deveria se perguntar o porquê também não está com raiva.
Espaços brancos e discussão da palmitagem
Se sabemos que existe um “teto” de possibilidades para a ascensão de pessoas negras, sabemos também que são poucos aqueles que conseguem furar esse teto. O espaço para nós ainda é muito pouco. Eu entro em lugares e automaticamente meu olhar constata que eu sou a única negra ali. Essa realidade define a forma que posso me comportar, como eu devo me vestir, que tipo de racismo que eu terei que suportar. E se estamos aqui debatendo a solidão da mulher negra, estamos falando também de quão solitário é ocupar lugares onde ninguém se parece com você.
Isso ocorre porque, no Brasil, para pessoas negras poderem lutar contra o racismo, é preciso fazer um investimento intelectual. Você precisa ler, estudar, pesquisar. Você precisa ocupar ambientes brancos. E aí sim você começa a entender. Os negros marginalizados nas favelas, ou em qualquer sub-bairro da zona oeste do Rio de Janeiro, como o que eu moro, não entendem a dimensão e o peso do racismo. Eles não conhecem outra realidade além daquela. E até mesmo a violência sofrida tratam como algo natural. São trajetórias que se repetem em caminhos conhecidos. É como estar preso numa sala com a porta trancada. Até que uma pessoa decide arrombar a porta. Felizmente, com o decorrer dos anos, temos visto mais pessoas negras arrombando a porta. Só que ainda é pouco.
E seguindo falando de solidão, é importante ressaltar também o quão solitário é ser uma mulher negra que arromba a porta. Essa mulher sempre estará cercada de pessoas brancas. Pessoas com os mesmos interesses serão brancas. Pessoas com os mesmos sonhos serão brancas. As opções são brancas. Então eu, particularmente, acredito que na discussão sobre a palmitagem, – normalmente a respeito de pessoas negras em ascensão – esse aspecto é deixado de fora. Falando, é claro, para além do padrão de beleza eurocêntrico socialmente imposto.
É possível fazer uma análise de como o cinema retratava, há poucos anos, – e ainda retrata – a vida amorosa de pessoas negras, mais especificamente de mulheres. Por exemplo, em um filme majoritariamente branco, com uma protagonista branca, temos uma mulher negra, normalmente amiga da protagonista, num espaço coadjuvante. Para que o final seja feliz para todos, de um ponto de vista romântico, magicamente surge um homem negro que irá se apaixonar pela única mulher negra da história. Não há nada mais fantasioso que isso. Primeiro porque, se você é a única pessoa negra daquele ambiente branco, dificilmente vai surgir uma segunda pessoa negra. Você já está ocupando aquela cota. Segundo que, ainda que isso aconteça, esse homem negro dificilmente vai escolher ficar com a mulher negra.
Então, eu não consigo enxergar num filme assim a tentativa de diversificar o elenco porque a pessoa branca que roteiriza um filme predominantemente branco não está preocupada com o debate sobre a palmitagem. A intenção na verdade é não tornar algo natural uma pessoa negra ficar com uma pessoa branca. E isso, por si só, já é muito problemático.
Uma mulher negra, historicamente preterida, não apenas pelos brancos mas também pelos negros, não vai deixar de se relacionar com uma pessoa disposta a lhe dar carinho e afeto, e que está dentro do seu convívio social, só porque ela é branca. E culpabilizar essa mulher é colocar sobre ela o peso de todo o racismo estrutural vigente na sociedade, e que, você vai me desculpar, não é problema dela.
8M
Estamos no último dia de março e é interessante observar o movimento que ocorre logo no início deste mês, de mulheres dizendo que não querem "parabéns", flores e chocolate no dia 8. Ok, faz todo o sentido. Esse não é um dia feliz, e sim de resistência.
Mas que mulheres são essas tão bem quistas que podem prontamente recusar afeto em prol de uma luta? Que mulheres são essas que recebem tanta atenção por conta de um dia? Particularmente, eu nunca recebi. Na verdade, para não ser injusta, a primeira flor que recebi foi esse ano, da recepcionista da academia que frequento, que estava distribuindo para todas as mulheres que entravam (e eu fiquei MUITO feliz). Se eu já soube de alguma mulher negra tão paparicada, certamente foram pouquíssimas porque não me recordo de nenhuma.
Aí eu te pergunto: a quais mulheres se destina todo esse afeto gratuito distribuído no dia 8 de março? Será mesmo que é a todas as mulheres? E eu, não sou uma mulher? Sojourner Truth falou sobre isso no seu discurso que inaugurou o feminismo negro em 1851.
“Aqueles homens ali dizem que as mulheres precisam de ajuda para subir em carruagens, e devem ser carregadas para atravessar valas, e que merecem o melhor lugar onde quer que estejam. Ninguém jamais me ajudou a subir em carruagens, ou a saltar sobre poças de lama, e nunca me ofereceram melhor lugar algum! E não sou uma mulher? Olhem para mim? Olhem para meus braços! Eu arei e plantei, e juntei a colheita nos celeiros, e homem algum poderia estar à minha frente. E não sou uma mulher? Eu poderia trabalhar tanto e comer tanto quanto qualquer homem – desde que eu tivesse oportunidade para isso – e suportar o açoite também! E não sou uma mulher? Eu pari treze filhos e vi a maioria deles ser vendida para a escravidão, e quando eu clamei com a minha dor de mãe, ninguém a não ser Jesus me ouviu! E não sou uma mulher?”
Essa é uma das falas mais poderosas que já ouvi porque esse feminismo neoliberal nunca deu conta das demandas afetivas de mulheres negras, e estamos sempre tendo provas disso.
O caso da família Smith
Relembrando o Oscar deste ano, que nos abriu debates importantíssimos, eu preciso trazer à tona o grande acontecimento da noite, já massificado nesses últimos dias. Como eu sei que você certamente está a par dessa história, irei contextualizar muito rapidamente.
O comediante Chris Rock era um dos apresentadores da cerimônia e escolheu fazer uma piada com o fato de Jada Pinkett Smith estar careca. A atriz não raspou o cabelo por estética e sim por uma questão de saúde, chamada alopecia. Além disso, é importante frisar que ela não era indicada a prêmio nenhum, estava apenas acompanhando seu marido. E o desfecho você já sabe, Will Smith, indicado e vencedor do Oscar de melhor ator, se levantou e deu um tapa na cara de Chris Rock em defesa de sua esposa.
Muito se debateu sobre o limite do humor, descontrole, violência física, até as masculinidades entrou na roda. Mas poucas pessoas compreenderam que estamos falando, acima de tudo, de uma questão racial. Este lamentável episódio elucida como que mulheres negras sempre são feitas de chacota. Explica ainda como o cabelo segue sendo um dos assuntos mais sensíveis na vivência dessas mulheres, por incansavelmente ser o principal alvo de racismo recreativo.
A ação de Smith foi totalmente motivada pela relativização e desumanização do sofrimento da mulher negra, que por um acaso era a mulher dele. É pedagógico para nós, povo negro, e ameaçador para quem está montado em uma estrutura que depende do nosso sofrimento. Não deveria ser visto como normal uma mulher negra ser humilhada na frente de uma plateia branca com repercussão mundial, mas é.
“A pessoa mais desrespeitada da América é a mulher negra. A pessoa mais desprotegida da América é a mulher negra. A pessoa mais negligenciada da América é a mulher negra.” - Malcolm X
Mas foi só quando eu ouvi o episódio #128 do podcast Angu de Grilo, com a Flávia Oliveira em lágrimas, que eu consegui entender porque essa história tinha me atravessado tão profundamente. Entendi porque no dia seguinte ao fato eu estava tão inquieta e a cada vez que eu olhava o Twitter me dava vontade de gritar: “EI, VOCÊS NÃO ESTÃO ENTENDENDO O PESO DISSO!”. Ninguém defende uma mulher negra. Nunca!
"Ah, mas está certo bater?” Meu amigo, esse não é o ponto. Porque essa foi uma ação secundária de defesa a uma agressão. A violência física é realmente a pior que existe? Não tem uma resposta simples para isso. Haviam sim diversas atitudes que Will Smith poderia ter tido. E uma delas é a de ter se levantado e dado um tapa na cara do Chris Rock. Você não precisa concordar, você pode achar que faria diferente, mas não pode deslegitimar o ato dele de entrar em defesa de uma mulher negra, da mulher dele. Esse deveria ser o ponto central desse debate.
E aqui eu deixo um questionamento: por que incomoda tanto uma mulher negra ser defendida? Quem tem coragem de entrar em defesa de uma mulher negra? Você tem? Ou você se omite? Eu não prego a violência. Mas eu entendo a reação do Will, e agradeço. Em nome da história das mulheres negras que sempre são ofendidas e nunca são defendidas.
Muitas mulheres disseram: “Eu não preciso que um homem me defenda, século XXI blá blá blá machismo”. Que mulher é essa que sempre foi defendida pelos homens? A mulher negra se defende sozinha o tempo todo. A mulher negra nunca teve direito à proteção, à ficar em casa tomando conta de seus filhos, à ser sustentada. Sempre foi ninguém por nós e todos contra nós.
Como bem disse Isabela Reis no podcast, as mulheres negras nunca foram protegidas por ninguém. Nem hoje, nem no passado, nem nunca na história. É um verdadeiro ato revolucionário validar a dor de uma mulher negra. Essa história de se desvencilhar do patriarcado e ser autossuficiente é e sempre foi uma demanda do feminismo branco. Então não é possível abrir um critério de comparação porque defender uma mulher branca não tem o mesmo peso social, racial, histórico e de gênero do que se levantar para defender publicamente uma mulher negra.
A responsabilidade da branquitude
A reflexão que eu deixo para você, pessoa branca, é: qual é a sua luta antirracista hoje? O que você tem feito para amenizar a solidão de uma mulher negra? O primeiro passo é reconhecer o seu próprio racismo. Porque se engana quem pensa que racista é só aquela pessoa que ofende descaradamente o povo negro. Se engana, sobretudo, aquele que acha que porque tem amigos negros, porque se relaciona ou se relacionou com pessoas negras não reproduz racismo. Queria que fosse fácil assim, mas não é. O racismo está entranhado em nós.
Você repara a quantidade de pessoas negras nos ambientes que você frequenta e nas pessoas que te rodeiam? De quantas mulheres negras você já teve medo sem que ela tivesse te feito algo? Você trata suas amigas negras da mesma forma que trata suas amigas brancas? Trata mesmo? Com o mesmo amor e carinho ou você acha que ela é muito forte e não precisa? Você assume as mulheres negras que você se relaciona da mesma forma que as mulheres brancas? Você ama publicamente uma mulher negra? Você defende publicamente uma mulher negra?
Como eu disse no início desse texto, o racismo é o maior dos meus gatilhos. É muito doloroso, mas essas coisas precisam ser ditas. Porque tratam o amor como luxo e, mais de 130 anos depois da abolição, a mulher negra ainda não tem acesso a ele. Nós temos pressa.
E todo mundo pode fazer alguma coisa. Um pouquinho que seja. Só basta abrir os olhos.
Devia se criar cotas para relacionamentos.
O homem deveria ser forçado a se relacionar com mulheres solitárias.
Relacionamentos não devem ser vistos como frutos da autonomia individual das pessoas.
Deveriam ser vistos como questão social. Não dá para se falar em autonomia individual e liberdade de escolha quando se tem alguém solitário e sofrendo.