“A Casa das Flores” é a comédia ácida que marca a renovação do drama mexicano
"De La Mora". Como diria Paulina, guarde bem esse sobrenome: “De-La-Mo-ra”. É sobre essa família da elite mexicana que a ótima série da Netflix transcorre ao longo de 33 episódios. “La Casa de las Flores”, que teve a terceira e última temporada divulgada em 23 de abril, é uma produção que exalta a liberdade do indivíduo usando o humor para fazer importantes críticas sociais.
A série escrita por Manolo Caro é uma comédia ácida (e prefiro não usar o termo “comédia negra” aqui) que mostra a queda de uma "família perfeita" segundo a ótica elitista-branca-mexicana. Mas que poderia ser da brasileira também porque as características são as mesmas: odeia negros e LGBTS em nome da família.
Encabeçada pela matriarca Virginia (Verónica Castro), os De La Mora fazem de tudo para manter as aparências e a floricultura da família de pé, ocultando mentiras, segredos e traições que surgem ao longo da trama.
A história começa com o suicídio de Roberta (Claudette Maillé), amante do patriarca Ernesto (Arturo Rios), pegando Virginia de surpresa durante uma festa na própria floricultura. Após o ocorrido, nada será como antes. Os segredos de toda a família começam a vir à tona e os personagens, de fato, apresentam suas complexidades enquanto tentam manter a figura de “família a ser seguida”.
A partir da questão da moralidade, temas polêmicos para a dramaturgia mexicana são discutidos: desde racismo, machismo, homofobia e formas não convencionais de famílias até relações conjugais de padres e seitas. No final, deixa um recado a favor da liberdade e da felicidade, mas lembra que toda ação tem sua consequência.
A partir daqui o texto pode conter pequenos spoilers, mas sem detalhes da grande final. Te prometemos! Vamos falar das três temporadas, com ênfase na terceira no último tópico.
Novela para os millennials?
Falar da estrutura narrativa e como a história é contada em “A Casa das Flores” não é nada fácil, ok? A série utiliza o que há de melhor nas telenovelas para construir um formato hibrido. Pode-se dizer que Manolo Caro conseguiu reinventar esse gênero tão forte no audiovisual mexicano a ponto de a imprensa local chamar a série produzida pela Netflix de “novela para os millennials”.
Manolo ainda construiu a narrativa de maneira que lembra o trabalho do espanhol Pedro Almodóvar, seja pelos tabus trabalhados ou pelos traços marcantes das personalidades femininas da série. A partir da segunda temporada, as cores vibrantes da estética visual presente na decoração ou na montagem também recordam Almodóvar. O bonito vídeo de abertura também chama atenção.
Vamos voltar a classificação de “novela millennial”: Manolo consegue se apropriar do melodrama noveleiro, como o exagero dos personagens e clichês já estabelecidos, para atualizá-lo e distribuí-lo a um público mais jovem que busca entretenimento. No entanto, não pense que a série é rasa. Ela não entrega um conteúdo mastigado ao público, mas sim deixa reflexões no ar.
Os personagens são paradoxais, exagerados, teatrais e, sobretudo, carismáticos. Uma fusão que deixa a história ainda mais cativante com as suas mil e uma reviravoltas. Não cabe spoilers sobre o final das temporadas aqui, principalmente sobre a terceira, mas já adianto que você pode esperar desfechos nada óbvios.
Manolo conseguiu criar uma história que poderia ser arrastada em centenas de capítulos de uma novela, mas é digerida em apenas 33 de maneira ágil. Claro, apresentar muito conteúdo em pouco espaço de tempo pode ser interpretado de diferentes maneiras. Em uma visão dualista, como algo bom por ter dinamicidade ou ruim por desviar da tela o telespectador menos atento. Eu prefiro a primeira opção para descrever “A Casa das Flores”
Ótimo elenco
Na pele de Paulina, Cecilia Suárez é o grande destaque da série. Ela rouba a cena com sua maneira pausada de falar, vocalizando sílaba por silaba, e forte dramatização, o que lhe dá apelo popular. Ao interpretar Virginia, ã veterana das novelas Verónica Castro também é um ponto alto da série na primeira temporada, mas surpreende ao sair no final dela em um desfecho inesperado.
O elenco principal é completado por Dario Yazbek (como o singular Julián), Aislinn Derbez (a empoderada Elena), Juan Pablo Medina (o contador Diego), Paco Leon (a advogada Maria José), Arturo Ríos (o patriarca Ernesto) e Norma Angélica (a empregada Délia). De maneira geral, a complexidade dos personagens é muito bem escrita pelo autor e bem interpretada por todo o elenco.
É essa combinação entre personagens carismáticos e boas atuações que seguram a 2º temporada, a que apresenta rendimento inferior em relação as demais. Mas isso pode ser desculpado pela ausência de Verónica Castro já que a personagem Virginia de La Mora dava profundidade à trama.
Com a saída repentina de Verónica da série, o autor teve de explicar a morte da personagem fora das telas. Isso fez a trama perder o ritmo nos primeiros episódios da temporada, afastando os personagens dos seus reais objetivos, como readquirir a floricultura perdida para os maiores rivais. Apesar disso, Manolo consegue recuperar a narrativa da trama que tem seu ápice na terceira temporada.
Apoio ao movimento LGBT+
De todas as críticas sociais, essa é a mais forte. A série dá visibilidade a diferentes nichos da comunidade LGBT+ durante as três temporadas. Julián e Diego movimentam a trama em situações complexas e reviravoltas inimagináveis para viver o amor deles. Na terceira temporada, o conservadorismo quase vence a batalha quando Diego vai a um curso de “cura gay” e sofre choques elétricos.
Quanto ao debate da transexualidade, Paco Leon interpreta Maria José, ex-marido de Paulina de La Mora. A personagem não é retratada de maneira caricata, pelo contrário, é uma advogada respeitada e bem sucedida, tendo importante função na trama.
Já a cultura drag queen é exaltada ao longo das três temporadas. Ouso dizer que sem as drags do cabaré de Ernesto a obra seria inviável mesmo que elas não façam parte do elenco principal.
Um toque musical
É inegável o toque musical dado por Manolo à série, mas não é só por muitas cenas se passarem dentro de um cabaré que exalta divas dos anos 80 e 90 da música mexicana. Em alguns momentos, principalmente na segunda e terceira temporada, os personagens cantam no meio de cenas e acontecimentos caóticos.
A verdade é que somente uma série como “A Casa das Flores” que poderia unir artistas tão diferentes em sua trilha sonora. Julieta Vengas, Glória Trevi, Yuri, Mon Laferte, Thalia, Los Angeles Negros e até a nossa Xuxa, com seu “Ilariê”, estão na trilha sonora. Então, prepara-se para ouvir desde vallenato e música tradicional mexicana até o POP e rock dos anos 2000.
As músicas são responsáveis por conectar cenas independentes, realizar passagem de tempo, marcar características dos personagens, além de entreter também porque é um espetáculo a parte.
O desfecho
A terceira temporada é a última e melhor temporada de todas. Utiliza de feedbacks para explicar o presente. Assim, podemos ver duas narrativas paralelamente: na atualidade, as aventuras de Paulina e seus irmãos para resolver questões pessoais pendentes; há 40 anos, a vida rebelde de Virginia ainda adolescente, bem diferente do que se tornou quando adulta e matriarca da família.
É essa viagem ao passado que permite compreender imporantes fatos sobre os integrantes da matriarca da família De La Mora. O trio amoroso de Virgínia com Ernesto e Salo, a amizade com Pato, o gosto pela marijuana e o porquê de mudar tanto de personalidade na fase da adulta são explicados.
Para contar esse período da história, foi adicionado um elenco jovem eficaz, com destaque para Isabel Burr, como Virginia adolescente, e Christian Chávez, interpretando Pato, um jovem gay que luta contra homofobia na década de 70. Inclusive, uma cena do jovem remonta a 1º Parada do Orgulho LGBT realizada na Cidade do México.
A terceira temporada também representa o auge da criatividade e discurso afiado de Manolo. Críticas à cura gay, menções à corrupção no México e deboche contra Bolsonaro, que causou murmurinho nas redes sociais, se destacam. Além disso, os personagens possuem finais dignos e todas as perguntas construídas ao longo das temporadas são respondidas de maneira coerente, até aquelas que já podíamos ter esquecido. Isso mostra como o formato autêntico e autoral da série de Manolo Caro funcionou muito bem.
Por fim, o ensinamento máximo da série é que o amor sempre vence e não importa qual forma e cor tenha: o amor entre uma família, entre um casal, entre as amigas drags no cabaré... Além disso, destaca que "a vida nos dá diferente oportunidades e a felicidade é o resultado de se tomar as decisões corretas", como diz Roberta, que se tornou narradora da trama após sua morte no primeiro episódio.
____
Quer saber nossas impressões sobre diversas obras das mulheres na cultura? Cinema, música, literatura, teatro e muito mais. Tudo isso, duas vezes por semana, na categoria 'Crítica'.
Comments